Wednesday, June 30, 2010

A língua portuguesa como reflexo cultural – as formas de tratamento correntes na cidade “lubanguense”

O uso que qualquer falante faz da língua reflecte o seu nível cultural, entendendo, neste texto, cultura, de acordo com Birou (1966:98), “quando a palavra é empregada para se aplicar a um homem em particular, [visando o seu] grau de formação, de instrução, ou ainda, os cuidados ao espírito e às ocupações do espírito”.
Muitos ainda terão na memória os tempos em que era considerado incorrecto o tratamento por TU a um superior hierárquico, ancião, professor, familiares mais velhos, como de filhos para pais, sobrinhos para tios, netos para avós, esposas para esposos. Não era socialmente permitida tal indecência. Já neste caso, podemos, entretanto, entender cultura segundo o sociólogo Giddens (2008): aspectos intangíveis como, por exemplo, os valores; e aspectos tangíveis como, por exemplo, os símbolos.
Na sociedade angolana actual (nesta perspectiva, muitas vezes preferimos o adjectivo “moderno” ao “actual”), verificamos que o tratamento por TU ou SENHOR (há duas décadas atrás: CAMARADA), SENHORA, DONA, SR DOUTOR, é bastante indiferente. Ou seja, é qualquer coisa como tudo serve, embora prevaleça o TU. O paradoxo surge do facto de que ainda nos encontramos numa sociedade estratificada – razão suficiente para que se observassem variações nas formas de tratamento. Hoje parecer-nos-ia desajustado ou, então, “exótico” o tratamento de SENHORA FULANA num estabelecimento público entre o empregado e o cliente, em virtude de o sistema de tratamento ter evoluído muito nos últimos anos. Todavia, ainda é possível ouvirmos SENHORA FULANA ou POR FAVOR, SENHORA; POR FAVOR, DONA. A verdade, porém, é que não é tão comum quanto Ó TIA, Ó TIO, KOTA, MINHA KOTA. Todo mais velho é o tio ou kota do mais novo, todo jovem com idade superior a de outros jovens, reunidos ou concentrados algures: no táxi, na fila do banco, etc., é o kota. De facto, alguns dos nossos valores culturais rezam que tio(-a) não é apenas irmão da mãe ou do pai, mas sim todo aquele com idade igual ou superior a da mãe ou do pai. Do mesmo modo se diga do avô. Ou melhor, basta ser velho para ser nosso avô. Por tudo isto, a questão que colocamos é a seguinte: Como proceder numa sociedade que, para além dessas mudanças nas formas de tratamento, continua ainda estratificada?
Concordando com Helena (2006:87), “As formas de tratamento apelam mais directamente à adequação discursiva entre o locutor (aquele que fala) e o interlocutor (aquele que ouve) numa situação de comunicação sócio-cultural”. Contudo, na nossa urbe entre uns e outros, instruídos, formados, graduados, as formas são indiferentes, mesmo que subentendidas, posto que as incorrecções gramaticais as denotam. Vejamos as seguintes frases:
Num banco comercial:
O Cliente: Bom dia senhor, dá-me um impresso, por favor. [A forma verbal concorda com TU.]
O Funcionário: Sim, aqui está. Preenche com letra de imprensa. [A forma verbal concorda com TU.]
O Cliente: Desculpa, não percebi o que me disse. [A segunda forma verbal concorda com VOCÊ, ou SENHOR, mas a primeira não.]
O Funcionário: Para preencher com letras maiúsculas. [A forma verbal indetermina a pessoa do discurso.]

Ao telefone uma aluna conversa com o seu professor:
A Aluna: Alô, alô, professor Carlos? Sou eu a Salomé sua aluna.
O Professor: Olá, tudo bem?
A Aluna: Bem obrigada. E o professor como estás?
O Professor: Estou bem. Diga lá, o que queres?
A Aluna: Quero saber se podes me tirar uma dúvida.
O Professor: Espera o dia da aula!
A Aluna: Sim, professor. Licença.
O Professor: Ok.

Pelas formas verbais [e se calhar não só] não nos é possível indicar o grau de relação que a aluna tem com o professor (vice-versa). E sobre este caso não temos dúvida de que os aspectos culturais quer tangíveis, quer intangíveis não se colocam nesta abordagem.
Definitivamente, perante essa situação indefinida em relação às formas de tratamento, compreendemos não haver da parte de muitos utentes da Língua Portuguesa consciência da existência do sistema de formas de tratamento no Português Padrão Europeu (PPE) – norma ainda seguida por nós. São, pelo menos, dois tipos de formas, observando como parâmetro o grau de proximidade ou afastamento entre o locutor e o interlocutor: tratamento informal e tratamento formal (ou de cortesia).
No primeiro caso há uma maior proximidade ou familiaridade entre locutor e interlocutor, recorrendo a formas de 2.ª pessoa do singular (Tens fome?) e de 3.ª pessoa do plural (Têm fome?).
No segundo caso, utiliza-se a 3.ª pessoa do singular ou do plural nas formas nominais, pronominais e verbais (Sim, aqui está. Preencha com letra de imprensa. Senhores professores, velem pelos vossos alunos. Excelentíssimo Senhor Director, queira receber os meus votos de bom fim-de-semana.).
A Língua Portuguesa dispõe, parafraseando Helena (idem), de diversos recursos para marcar uma maior ou menor distância entre o locutor e o interlocutor. Basta que o primeiro seleccione a forma que melhor traduza a relação que mantém com o segundo. É, por isso, que as incoerências no uso de determinadas formas de tratamento continuam a reprovar muitos falantes (achados instruídos, formados, graduados), provocadores inclusive de eventuais mal-entendidos (é o caso da aluna/professor).


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Por: Márcio E. da S. Undolo, professor graduado em Ciências da Educação pela Universidade Agostinho Neto, ISCED-H.
E-mail: marindolo@hotmail.com

Lubango, 25 de Junho de 2010.

1 comment:

  1. Espero que o artigo que apresento seja do interesse de muitos utentes do meu mini-site, em experiencia.

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